1 Os Quatro Reinos 15/9/2012, 00:18
FilipeJF
Membro de Honra
Sinopse:
O último livro da magia foi encontrado. Agora, o único que teve a chance de aprender magia, vaga pelos reinos com o paradeiro desconhecido. Enquanto uma guerra para obter magia está a ponto de iniciar, uma outra ameaça se ergue no profundo Abismo Escuro.
O Mundo de Eudon (Introdução, digamos)
- Spoiler:
O mundo de Eudon é composto por quatro reinos, sendo eles: Haluin, Alestan, Eduin e Grimold. Estes formam os Quatro Reinos.
Há muito tempo, quando o mundo ainda encontrava-se sob a Primeira Era, Eudon, O Imortal, foi o humano escolhido perante os deuses para obter a imortalidade e dar a sabedoria para os mortais. Ele ajudou Engerran, O Construtor, fundar a maior das cidades dos Quatro Reinos, cuja foi batizada de Engerran, no Reino de Grimold.
Ajudou-o também a erguer o Castelo do Céu nas Montanhas Solitárias, no Reino de Alestan; ajudou-o a fundar a Cidade de Pedra erguida no subterrâneo da Planície do Arco, no Reino de Haluin; e, por fim, criou por si próprio o Abismo Escuro no Reino de Eduin, cujo fora o maior dos abismos. Ninguém nunca soube a profundidade.
Durante muito tempo espalhou sabedoria por todo o mundo e ajudou milhares de pessoas. No entanto, um dia, decidiu passar às pessoas o maior elemento de sua sabedoria: a magia.
A magia foi por muitos anos algo normal e permitido em qualquer um dos reinos. Mas um dia, um mago tão poderoso quanto o próprio Eudon rebelou-se contra todos: Grimbaud. Devastou parte dos Quatro Reinos, até finalmente partir para Grimold para derrubar as muralhas de Engerran.
Mas Eudon não permitiu. Encontrou-se com ele e travou um duelo mortal. No fim, os dois morreram; Eudon explodiu-se junto a ele, salvando os Quatro Reinos do caos que ele espalhou. O mundo, então, fora batizado de Eudon. Os restos de ambos os magos foram jogados no Abismo Escuro.
Depois de suas mortes, a magia começou a ser esquecida por todos. Já não era mais permitida, pois a prática dela para obter riquezas era constante; ela estava tornando-se algo vil. Então, os reis dos Quatro Reinos decidiram acabar de uma vez por todas com tudo aquilo. Mataram todos os magos e aprendizes, e destruíram todos os objetos possíveis relacionados à magia. Depois disso, aconteceu o fim da Primeira Era, e o início da Nova Era foi anunciado.
Mas, por mais que os reis tivessem sido cautelosos para encontrar todos os objetos mágicos, não haviam feito o suficiente.
Um livro fora esquecido, em algum lugar...
Prólogo:
- Spoiler:
Era uma noite fria.
O som de quase tudo se ausentava naquela floresta – não havia animais. O vento chocava-se com força nas árvores, e empurrava-as com rudez. Um homem caminhava lentamente na única trilha que lá existia. Trajava um manto negro, cujo capuz cobria parte de seu rosto. Presas ao seu cinto havia duas adagas, há pouco afiadas; tinham o cabo detalhado com ilustrações de dragões. Em sua mão carregava um livro roxo, destacado demais na escuridão. A capa não tinha tantos detalhes, exceto pela ilustração – uma mão segurando uma pirâmide. Ele segurava o objeto com força, como sendo algo muito sagrado; ou talvez estivesse apenas prevenindo-se de algo.
Pequenas valas introduziam-se em seu caminho, fazendo-lhe tropeçar. Seguia para o único lugar povoado naquela floresta, onde várias pessoas o esperavam. A neve, desaparecida há muito tempo dali, começava a cair novamente. O lugar começava-se a tornar-se mais gélido, mas ele escolheu não encolher os braços, mas sim continuar em frente.
Quando finalmente alcançou seu destino, todos lhe saudaram. A multidão estava num bosque livre de árvores, iluminado com tochas e recheado de alimentos que foram postos sobre as mesas de madeira. Uvas, taças com vinho, pães, carne, eram vistos na mão de ambos os que estavam presentes. O local era protegido de neve ou chuva por uma cobertura de madeira, semelhante a um simples telhado. A Mesa da Floresta era o nome pelo qual aquele lugar era conhecido. Lá, o frio era quase inexistente; uma grande fogueira fora feita entre as quatro mesas, e muitos se encontravam sentados ao redor dela.
– Ellis, que bom lhe ver novamente! – um dos homens cumprimentou o viajante, que lhe retribuiu com um gesto de cabeça. Várias pessoas continuaram lhe saudando, porém fez questão de não conversar com nenhuma.
Ele continuou caminhando mais à frente, até chegar à fogueira. Sentou-se ao lado de um velho amigo, que era o motivo por estar ali. Assim como Ellis, ele devia ter pouco mais de vinte anos.
– Como está, Godart? – Ellis perguntou. – Faz muito tempo que não lhe vejo.
– Sorte que quase sempre há reencontros de velhos amigos – Godart respondeu, bebendo um gole da cerveja que tinha em sua caneca. – Trouxe aquilo que roubamos?
Ellis entregou o livro ao amigo, que inspecionou a capa com atenção. Depois, abriu e o folheou, sorrindo. Godart parecia satisfeito.
– É lindo. Finalmente estou com ela em mãos.
Ellis franziu a testa.
– Que pretende fazer com ela? Não usará para matar. Prometeu isso.
Godart riu, mas não muito alto.
– Não há conquistas sem sangue. Será que ainda não compreende isto, Ellis, mesmo depois de ter sido um guarda por anos?
Ellis sentiu vontade de atacá-lo repentinamente naquele momento, mas teve de se abster.
– Apenas tente não se conduzir ao poder. Se fizer isso, ficará sedento a ele, e... – ele decidiu parar. Godart pensaria que isso acontecera a ele.
– Vamos, Ellis, compreenda. Tornaremo-nos reis, seremos mais que meras pessoas desconhecidas que festejam no meio de uma floresta.
– Pare com isso, agora. Terei de tomar o livro de você, se continuar.
Godart bebeu toda a cerveja restante num gole, e não respondeu seu antigo amigo. Colocou a caneca em frente a suas pernas cruzadas, e, sem que Ellis percebesse, levou seu braço para trás de suas costas, e retirou uma pequena faca da manga de seu casaco. Para que os outros não vissem a arma, colocou o braço ao redor do pescoço de Ellis, e lá encostou a lâmina gelada na frágil e pálida pele.
– Não pode fazer nada agora. Você vai morrer aqui – disse Godart.
Ellis percebeu que ele estava realmente sedento ao poder. Poderia morrer ali, com a garganta cortada por um velho amigo, ou poderia matá-lo. Achou que talvez estivesse sentindo a mesma vontade de possuir poder.
– Pare com isso, Godart. Não me faça ter que impedi-lo...
Godart gargalhou, e aprofundou a lâmina lentamente no pescoço do velho amigo. Ellis percebeu, então, que teria de agir. Moveu com cautela seu braço, e virou a palma de sua mão para cima. Começou a mexer todos os seus dedos velozmente, fazendo Godart gargalhar.
– Mas o que está fazendo? Está se sentindo nervoso? Acalme-se, isso logo passará. Apenas deixe-me terminar... – a lâmina já fazia o pescoço de Ellis sangrar, e ele então teria de interromper o feitiço que começara a fazer.
Levantou-se repentinamente, com o pescoço já ferido, e correu até uma das mesas. Saltou sobre ela e suas comidas, causando raiva na multidão. Mas antes que alguém pudesse fazer algo, Ellis começara a fazer o feitiço que não terminara. Movia seus dedos velozmente, e uma esfera flamejante formava lentamente em sua mão. Os olhos de todos refletiam aquela cena incrível; era algo jamais visto pelos olhos de qualquer um ali presente. Ellis pareceu, realmente, assustador naquele momento. Aquela esfera, sobre a palma de sua mão, significava uma coisa – o renascimento da magia.
Godart, assim como todos os outros que estavam ali, sentiu medo. Ellis lhe olhava bem nos olhos, e parecia entender a sede que tinha pelo poder.
– Sente medo, Godart? É isso que todos sentiriam se lhe vissem usar magia. Agora consigo sentir o poder que você deseja. É incrível.
Godart deixou o livro cair. Tentou fugir, mas era tarde. Ellis lançou a esfera em seu rosto, e as chamas espalharam-se por todo o corpo. Seus gritos de desespero fizeram com que todos fugissem, aterrorizados. Restou ali apenas Ellis e as cinzas do velho amigo esparramadas sobre o livro. Ali, na Mesa da Floresta, a magia renascera, e Ellis tornara-se alguém sedento pelo poder.
Capítulo 1: Aldun I (Ambos os capítulos são Point Of View - POV -)
- Spoiler:
A manhã chegara fria e enevoada, com o único som sendo o canto dos galos. Partiram antes do nascer do sol até a Mesa da Floresta, para recolherem os restos do antigo membro da Guarda Real. Aldun cavalgava ao lado de Rei Elmer e do filho, Príncipe Alger. Os outros guardas vinham logo atrás, enquanto seguravam a bandeira real, cujo estandarte era duas espadas cruzadas.
Eram os restos de Godart que procuravam. Na noite anterior, antes de partir, ele havia dito ao rei: “Lhe trarei o poder para governar, Vossa Majestade. Não demorarei”. Rei Elmer achou-o estranho neste momento, mas Aldun soube o que significava. Tratava-se do livro que haviam roubado há muitos anos em Porto da Tempestade, num dos barcos, enquanto embarcavam para Alestan. Mas nesta época havia um antigo membro da Guarda Real, que fora expulso pelo próprio rei: Ellis. No dia que o rei expulsou-lhe, fugiu com o livro.
Numa noite, portanto, Godart encontrou-o numa viajem em que fez até a cidade de Morten. Combinaram de encontrarem-se na Mesa da Floresta, para que Ellis desse-lhe o livro. Mas por algum motivo algo saiu errado, e Ellis acabara assassinando-o. “Ele sabe magia”, pensou Aldun. Sua pele estremecia ao pensar nesta possibilidade.
Mesmo que soubesse sobre o que ocorrera, ele não tinha a menor vontade de manifestar-se para o rei; provavelmente algo de ruim lhe aconteceria. Caso citasse Ellis, poderia ser morto por ele próprio; não queria correr o menor risco de perder a vida.
Sabia o motivo de Ellis ter sido expulso da Guarda Real. Ele havia matado inocentes em Engerran, por mera vontade. Já não era a primeira vez que ele se dava de louco; mas agora que sabia magia, poderia transformar sua loucura num massacre de todo o reino. Aldun agora o temia. Ellis não era mais o velho amigo que conhecera aos doze anos, em Engerran, quando os pais tornaram-se da Guarda Real. Não era mais Ellis que temia Aldun; Ellis, caso visse-o, cortaria a garganta do velho amigo com todo o prazer que pudesse encontrar.
Montado solenemente sobre o cavalo, Elbert, o capitão da Guarda Real, aproximou-se devagar dos restos de Godart. O cavalo empinou, desejando fugir. Elbert segurou com forças as rédeas e impediu-o.
Rei Elmer e Príncipe Alger mantinham o máximo de distância possível. O rei fez um gesto para que Aldun aproximasse-se de Elbert, e ajudasse-o a recolher os restos carbonizados. Relutante, ele desmontou-se da montaria e caminhou até Elbert.
– Vamos, faça alguma coisa – ordenou o capitão, oferecendo a Aldun uma sacola de tamanho suficientemente grande para colocar os restos. Aldun tomou-a da mão de Elbert e pegou um dos ossos, jogando-o dentro do saco. Teve de abster para não vomitar.
Rulff, o Mestre de Espadachins, desmontou-se ao lado de Elbert. Remexeu o monte de ossos com o pé, enquanto Aldun pegava-os e os colocava dentro do saco.
Quando pegou finalmente o crânio, viu-se um livro roxo caído entre as cinzas. “Ele não pode tê-lo abandonado”, murmurou Aldun para si. Elbert ajoelhou-se e tomou-o da mão de Aldun. O folheou atentamente, com uma expressão séria. Quando o fechou, um largo sorriso surgiu no rosto jovem de vinte e cinco anos; tinha a mesma idade de Aldun.
– Magia! – ele gritou. O rei barrigudo bufou e riu da palavra proferida pelo jovem. Saltou do cavalo e caminhou até ele, tomando-lhe o livro.
– Deuses! – Rei Elmer gritou, enquanto folheava-o e observava as ilustrações. – Como Godart encontrou isto?
Quando Aldun terminou de guardar os restos, levantou-se num pulo. Entregou o saco para Rulff e respondeu o rei:
– Isto foi há muito tempo, Vossa Majestade, no Porto da Tempestade. Éramos eu, Ellis e Godart. Quando embarcamos para Alestan, ficamos no interior do navio. Ellis abriu uma das caixas que lá havia e encontrou o livro. Quando ele matou os inocentes, Vossa Majestade expulsou-o da guarda. Naquela noite ele fugiu com o livro.
Elmer entregou o livro para Elbert.
– Por que não me disse antes, quando isto aconteceu, Aldun?
– Eu lamento muito, Vossa Majestade. Godart e Ellis mandaram-me guardar isto em segredo...
– Continue guardando mais segredos e também morrerá – disse rei, apontando para a sacola com os restos do antigo guarda. – O que mais você sabe sobre isso, Aldun?
O guarda aproximou-se de uma das mesas com comidas esparramadas e sentou-se. Suspirou fundo e disse:
– Eu não acho que Godart tenha sido simplesmente queimado por fogo comum, Vossa Graça. Penso que Ellis queimou-o usando magia. Ele ficou com o livro tempo o suficiente para aprender magia.
O rei pareceu raciocinar por um instante, enquanto rodeava as cinzas de Godart. Elbert, impaciente, disse:
– Vamos voltar para Engerran. Vamos guardar o livro.
– Cale-se – ordenou o rei. – Não quero que ninguém além de nós saiba disso. Nem mesmo familiares; não conte para sua mãe, Alger.
O príncipe assentiu com um gesto de cabeça, e pôs-se a pensar sobre a mãe. Annabel era uma mulher nervosa, e também faladeira. Tudo o que caísse aos seus ouvidos logo todo o reino estaria sabendo. Elmer, por este motivo, sempre tentava não dizer nada a mulher.
Alger nunca entendeu porque o pai se casara com alguém como ela. Pela beleza, talvez. Era um tanto mais nova que o pai: Elmer possuía quarenta e dois anos, e Annabel, trinta e dois. Alger tinha apenas doze, mas era um ótimo arqueiro; sempre pensou que aquela era a vocação perfeita para transformar-se. Tinha aulas escondidas com Aldun, que também era um ótimo arqueiro. Mas o pai, caso descobrisse, com certeza cortaria a cabeça de Aldun e a penduraria no portão do castelo.
Henry, um dos Guardas Reais, montado num cavalo ao lado do príncipe, olhou para o rei.
– Majestade, este Ellis não pode ter ido tão longe. Talvez ainda esteja na floresta.
– Fora do reino ele não está – disse o rei. – De qualquer modo, enviarei Pombas-Mensageiras a todas as cidades vizinhas. Vamos procurá-lo também em Engerran – ele virou-se para Aldun. – Você, Aldun, guiará uma tropa pela Estrada Real até a cidade de Tristan.
Aldun pôs-se de pé.
– Majestade, sou um Guarda Real. Devo permanecer no castelo, ao seu lado.
– Eu tenho Elbert. Apenas ele vale todos vocês – ele gargalhou, e Elbert o acompanhou. – Aproveite que não estamos em guerra, e agora nossa prioridade é a magia, que nós descobrimos. E nós temos de encontrar Ellis e matá-lo. Ele é um mago; pode destruir as muralhas de Engerran.
– Devo ir para a cidade? – perguntou Aldun, caminhando até seu cavalo. Montou-se nele e virou-se para a trilha.
– Vá, prepare suas coisas para partir – ordenou o rei –, e leve consigo esta parte da Guarda da Cidade – ele apontou para os guerreiros que seguravam as bandeiras com o estandarte de Grimold. – Entenderam homens? E não digam nada a ninguém. Eu mesmo corto suas cabeças, caso o fizerem.
Os homens assentiram com um gesto, enquanto Aldun disparava pela trilha. Eles puseram-se a segui-lo, apressados.
“Vou mostrar-me um bom líder” murmurou Aldun, enquanto o tênue vento tocava-lhe as bochechas.
Aldun era um garoto sortudo; havia nascido na cidade de Tristan, como filho de um humilde ferreiro cujo pai chamava-se Baldwin.
Um dia o rei visitou-os, enquanto examinava as armas. O pai quase morrera naquele dia: Rei Elmer havia dito que eram armas de péssima qualidade, e havia mandado um Guarda Real matá-lo. Mas o ferreiro agiu, e lutou bravamente com o guarda, desarmando-o. Elmer viu como era um espadachim tão capacitado quanto o guarda, e então lhe deu um lugar na Guarda Real.
Aldun e Baldwin viajaram pela primeira vez à Engerran, onde transformaram a família, Golduin, numa família nobre. Baldwin um dia faleceu de uma doença desconhecida, e Aldun tomou-lhe o lugar de Guarda Real.
A mãe, Catherine, fugira. Após ter uma briga em que lhe custou uma cicatriz, fugiu da ferraria e abandonou Aldun com o pai. Apesar de jamais ter perdoado Baldwin, Aldun pôde agradecê-lo ao menos essa vez por ter lhe dado um lugar na Guarda Real. Mas ainda assim tinha esperanças de que um dia pudesse encontrar-se com a mãe; acreditava que ela ainda estava viva.
“Obrigado, Majestade. Posso encontrar minha mãe em Tristan”, pensou. Rezou para que pudesse encontrá-la e também encontrar Ellis.
Quando finalmente alcançaram as muralhas de Engerran, os guerreiros diminuíram a velocidade. “Nunca me canso de olhar para esta beleza” murmurou Aldun, olhando com brilho nos olhos para a cidade erguida em sua frente: uma imensa muralha de pedra havia sido construída ao redor da cidade. Era quase tão larga quanto à largura de uma casa; podia-se andar perfeitamente pelas muralhas, sem ao menos correr risco de cair. Após atravessar a primeira muralha, outra menor erguia-se na frente, portanto, também muito larga. Após cada portão que se atravessava de uma muralha surgia uma cada vez menor, até finalmente aparecer à cidade.
Aldun disparou contra os portões já abertos, seguido pelos guardas. Devia arrumar suprimentos e partir para Tristan.
Capítulo 2: Ned I
- Spoiler:
O Abismo Escuro estendia-se por quilômetros.
Ned adorava o ar quente que lhe roçava o rosto quando ia até aquele lugar. Estava sentado na beira do abismo, mais largo que qualquer construção já feita pelo homem.
Estava com os olhos fechados, concentrado no ar quente e tênue que lhe tocava suavemente os cabelos. Ao seu lado estava seu único companheiro, o cavalo nomeado Ônix. Era tão negro quanto à própria sombra do abismo.
A grama era vermelha. Sentar-se nela era confortável e relaxante. Para Ned, aquele era melhor lugar do mundo; não tinha a menor vontade de sair. Queria permanecer ali, sentado e com os olhos fechados, e jamais levantar-se.
Retirou a espada da bainha, cuja havia nomeado de Garra de Dragão, e a pôs em seu colo. Pegou uma pedra ao lado e passou-a no fio da espada; a lâmina cintilava como o Sol.
– Posso ouvi-lo – ele disse em voz alta, para o vazio em sua frente. A voz ecoou durante alguns segundos. Ouviu-se um grito agudo, após o eco parar. “Eles vão despertar” Ned murmurou. Não adiantaria dizer a ninguém sobre aquilo; as Sombras respondiam somente a sua voz.
“As Sombras vão surgir”, murmurou novamente. Era aquele o nome dado as criaturas que lá viviam – Sombras. Sabia que eram negras. Negras como a mais profunda escuridão.
Desde a morte dos dois grandes magos, as Sombras começaram a erguer-se. Ninguém nunca soube o motivo; disseram que quando os restos dos magos alcançaram o fim do abismo, as Sombras irritaram-se.
Mas as Sombras eram frutos da magia. Quando Eudon criou o Abismo Escuro, as Sombras surgiram juntas. Mas elas estavam adormecidas. Quando a imortalidade de Eudon terminou após sua morte, as Sombras saíram do sono profundo. Mas o despertar das sombras agora havia realmente começado.
– Ned... – uma voz suave sussurrou no ouvido do jovem. Vinha do abismo.
– Vocês vão despertar – disse Ned.
– Você é diferente, Ned... Por que nos escuta? – perguntou a voz. Era aguda. – Apenas Eudon, nosso criador, seria possível de nos escutar. Mas ele nunca nos escutou.
– E nunca escutará – disse Ned. – Ele está morto.
A voz voltou a gritar. Irritou-se com as palavras proferidas.
– Vá embora! – ordenou a Sombra. – Eudon é imortal!
Ned abriu os olhos e olhou para o fundo escuro do abismo.
– Ele está morto. Ele morreu há mil anos.
Houve gritos diferentes. Uma sombra surgiu do abismo, na forma de um braço, e agarrou o pescoço de Ned.
– Você me teme, garoto. Você me teme.
Ned segurou o braço de sombras com uma única mão, e o empurrou para longe. A Sombra gritou.
– Você é mortal! Um mero mortal!
– Eudon não era, e mesmo assim ele morreu. A vida pode não ser justa.
O braço transformou-se na forma de um homem, coberto por um manto.
– Quando eu despertar, você cairá no abismo, vivo. Você não chegará ao fim dele antes que morra de fome.
– Você é estúpido – disse Ned, levando a espada até o pescoço da sombra. – Eu nunca deixarei vocês saírem deste abismo. Vocês vão despertar para morrer. É melhor se encontrarem com Eudon.
– Vamos despertar para viver – disse a Sombra, tentando segurar a lâmina da espada. Atravessou-a. – Você morrerá quando eu despertar. Por que consegue tocar-me?
Ned pegou a mão da Sombra, e puxou-a para perto.
– Desça para o abismo e permaneça. Você deve permanecer lá por toda a eternidade.
A sombra se desintegrou e adentrou o corpo de Ned. Os olhos fecharam-se instantaneamente, e ele não mais conseguiu abrir.
– Diga-me, Ned, você vê? – perguntou a Sombra.
Ned tentou observar algo. Via a escuridão; nada mais.
– Vejo a escuridão.
A Sombra gargalhou tão alto que ecoou na mente de Ned.
– É isto que eu sou. É isto que trarei ao seu mundo. Escuridão.
– Eu não deixarei – disse Ned, imaginando o campo avermelhado ao seu redor. Conseguiu reproduzi-lo, mesmo com os olhos fechados. – Você pode ver?
– Você é persistente – a Sombra saiu do corpo de Ned, e ele pôde novamente abrir os olhos. – Por que não se une a mim? Afinal, você é o único que pode me escutar.
– É para isto que eu te escuto. Para lhe deter. Fui escolhido para isto.
A Sombra gargalhou. Desta vez tão alto que Ned tampou os ouvidos. Continuou a gritar, até que Ned desmaiasse.
Abriu os olhos. Estava no Castelo do Céu, na Torre-Centro, o ponto mais alto, talvez, do mundo. Tão alto que mais alguns metros para o alto encostava-se nas nuvens.
Aproximou-se do corrimão e olhou para baixo. Tudo estava negro. A escuridão subia lentamente na direção de Ned.
– Ela não me alcançará.
A Sombra gargalhou.
– Ela lhe alcançará.
Quando ela cobriu os pés de Ned, ele andou para trás. As costas se chocaram com força no corrimão, e ele caiu em direção ao chão. A escuridão cobriu-lhe completamente.
Quando alcançou o chão, permaneceu deitado. Olhou para o alto e viu o céu sendo coberto pela escuridão, aos poucos. O Sol tornava-se negro junto com as nuvens.
– Você não está preparado para me enfrentar, Ned – disse a Sombra. – Você não pode me vencer.
Ned levantou-se, e a escuridão finalmente cobriu o mundo. Ele desembainhou Garra de Dragão; ela cintilava. Não estava negra.
– Eu tenho chances! – ele gritou e cortou a escuridão. Quando ele a feriu, a escuridão dissipou-se num segundo, e a cor reapareceu.
A Sombra gritou, e Ned despertou.
– Do mesmo modo como despertou – a Sombra prosseguiu, gritando –, eu despertarei. Do mesmo modo como destruiu a escuridão, destruirei a luz.
– E deste modo eu novamente destruirei a escuridão – disse Ned. A Sombra riu.
Ned pôs-se de pé, e virou-se para trás. Viu as Ruínas de Emond, a poucos metros. Pensou se o terror que havia destruído a cidade tivesse sido a Sombra.
Quando começou a caminhar em direção a cidade destruída, sentiu uma mão segurar-lhe os cabelos. Foi puxado para o abismo, em direção a infinita escuridão. Mas não caiu; estava flutuando, de costas, com os pés apoiados sobre a terra.
– O que você fez? – perguntou Ned.
– Estou mostrando que tenho mais poder – a Sombra gargalhou. – Você é o único que pode me deter, e você é o único que eu posso deter – ela abaixou-o. Ned desembainhou a espada e cortou sob si. Acertou a Sombra, e o grito agudo ressoou por seus ouvidos.
Caiu em direção à escuridão, segurando com toda sua força Garra de Dragão.
– Maldito! – Sombra voltou a segurá-lo. Levou-o de volta a terra, e jogou-o ao lado de Ônix. O cavalo empinou, e distanciou-se do dono.
Ned levantou-se, atordoado. Cortou aleatoriamente o vento ao seu redor, mas nada aconteceu; recebeu apenas o ar quente que lhe acariciava as bochechas.
– Por que você pode me tocar? Por que eu posso lhe tocar? – perguntou Sombra, transformando-se numa mulher. Aproximou-se lentamente de Ned, que lhe olhava nos olhos negros e profundos. Ned gritou, e decapitou a sombra. Sombra novamente gritou tão alto que Ned tampou os ouvidos.
– Você é persistente. Junte-se a mim.
– Não – disse Ned. – Você deve morrer.
A Sombra gargalhou, desta vez, baixo.
– Garoto, por que é assim?
– Eu sou diferente.
– Por que é diferente? O que aconteceu em seu passado? Você é Eudon?
Ônix voltou galopando, lerdo. Ned levou a mão até cavalo, e acariciou-o. Pensou no seu passado, tentou lembrar-se do motivo de ser daquele jeito.
A mãe morreu para dá-lo a luz, e o pai nunca o perdoou por isto. Viveu ao lado do pai até completar oito anos, e então o pai abandonou-o.
Ned viveu sozinho por mais sete anos, com esperança de que seu pai cruzasse os portões da cidade de Alret e voltasse para a casa. Mas ele jamais voltou; aos quinze anos saiu da cidade, sem destino ou mapa para guiar-se.
E Ned correu. Correu até encontrar-se o lugar mais silencioso que pôde: as Ruínas de Emond. Lá ele permaneceu sozinho, ao lado de seu único amigo, Ônix.
Já tinha agora dezessete anos. Iria fazer dois anos que viviam apenas ele e Ônix nas ruínas. Conversava com a sombra fazia apenas uma semana. E não sabia o motivo daquele dom, técnica ou maldição.
Ele olhou para o abismo e disse:
– Sou diferente porque eu acredito em você. Porque eu vivo sozinho, ao lado do Abismo Escuro, e não tenho amigos. Eu vivo na escuridão, mas também na luz.
Sombra riu.
– Isto não faz sentido. Você é mago, garoto?
– Sou diferente, e nada mais – ele aproximou-se de Ônix e montou-o. Os raios do Sol da tarde já lhe tocavam as bochechas e as queimava.
Galopou em direção a sua casa, nas ruínas. “Eu a temo”, ele pensou. “Não posso negar isto”.
Capítulo 3: Ulric I
- Spoiler:
Os gritos de desespero retumbavam no acampamento. O inóspito Vale Escuro há muito não recebia visitantes que tanto lhe incomodassem.
Ulric, Osmund e Barton acreditavam que a busca pela bruxa chegara ao fim; tentavam fazê-la assumir que envenenara e matara metade da Vila do Carvalho com um veneno letal. Amarraram-na numa árvore à frente das duas únicas cabanas. Tinham de fazê-la sofrer para obterem a verdade.
Com um alicate, Barton apertava os dedos dos pés nus da garota, cuja não tinha mais de vinte anos. Seus gritos ressoavam pelo vale.
– Deve assumir. Poupe sangue – sugeriu Barton, pressionando o alicate. Ela gritou.
– Por favor, senhor, por favor, deixe-me ir. Eu não fiz nada. A bruxa é Avril, a Bela. Sabe disso!
Os olhos azuis lacrimejavam de dor e sofrimento. Mas era preciso; não passava de uma bruxa.
– Você é Avril. Bela até demais – disse Ulric, sentado num tronco de árvore. Osmund estava ao seu lado, afiando a espada com uma pedra. A lâmina tornava-se cada vez mais cintilante.
A garota soluçou. Um de seus dedos estava quase que completamente destruído; Barton não possuía piedade. Não por bruxas que desafiavam o poder dos Deuses.
– Disseram-me que Avril é loira. Essa é morena – disse Osmund, sem desviar os olhos da espada. – Será que é realmente ela? Ainda tenho dúvidas.
Ulric bufou.
– É ela. É a única sobrevivente da parte da vila devastada pelo veneno. Nenhuma garotinha suspeitaria da água do poço.
“Espero que seja mesmo ela”, murmurou Ulric. Temia que tivessem pegado a garota errada. Eram homens honrados a igreja, e suas vidas pertenciam aos Deuses. Eram homens de fé.
Desta vez tinham de pegar uma bruxa: Avril, a Bela. Ela havia desafiado os poderes dos Deuses, e se colocado acima das forças divinas. Avril, apesar disso, já havia espalhado doenças por várias províncias do Reino de Haluin. Era uma bruxa assassina. Os guerreiros agora deviam achá-la e acabar com o caos que ela espalhava há anos pelo reino. Tinham de acabar com ela pela fé que tinham pelos Deuses. Os padres da Cidade da Pedra desejavam a presença da assassina; por conta disso, os três jamais poderiam voltar para casa sem que ao menos possuíssem o cadáver da bruxa.
Dos três, Ulric era o qual mais se empenhava para encontrá-la, apesar de não aparentar. Dissera que não fora na missão pela ordem dos padres, mas sim pela ordem dos Deuses. Contou que eles pediram-lhe este favor enquanto orava. Ninguém poderia dizer se era verdade ou não; ele nunca iria dizer.
Osmund era o mais novo do grupo. Há pouco havia tornado-se um cavaleiro da fé. Era um garoto, de apenas vinte e dois anos, porém era bom com as espadas. Ulric possuía trinta e sete anos, no entanto, era superior a Osmund. Ulric acreditava que ele teria um futuro bom e sem guerras; isto caso ele conseguisse sobreviver à caça pela bruxa.
Barton era um fidalgo de uma família nobre, quando criança. Perdera os pais aos doze anos, na Invasão da Planície do Arco, que afetou mortalmente a Cidade da Pedra. Fora recolhido pela igreja, e mais tarde, decidiu tornar-se um cavaleiro. Conseguiu graças ao já falecido Padre Waldew, que havia dado-lhe a oportunidade. Agora possuía vinte e três anos.
Os três conheceram-se havia anos, quando apenas Ulric era um cavaleiro. Osmund e Barton, na época, não passavam de monges. Quando se tornaram cavaleiros, Ulric acabara de regressar de mais uma missão. Neste dia receberam a oferta de realizarem uma primeira missão juntos. A missão fora um total sucesso.
Um dia, quando regressaram, aceitaram uma missão que pensaram ser como ambas as outras: buscar Avril, a Bela. O que pouco eles sabiam era que Avril, a Bela, era a mais temida bruxa. Agora sabiam o porquê de ela ser tão temida: ela matava e destruía, sem piedade. Já haviam recebido uma carta dela, cuja dizia: “Os fiéis não podem vencer-me. Eu desafiei as forças divinas, e estou vencendo. Enquanto estão à minha procura, uma pessoa morre por culpa de minhas feições. Eu vou triunfar”. Ela era uma bruxa diferente; era sagaz, inteligente e sabida. Sabia aplicar perfeitamente seus golpes, por mais simples que pudessem ser.
Barton pressionou o alicate. A garota novamente gritou.
– Eu não sou ela! Eu juro pelos Deuses, juro! – ela berrou, entre soluços e lágrimas.
– Ela não vai assumir. Quer fazer alguma coisa, Ulric? – perguntou Barton, distanciando-se da garota e atirando o alicate ao chão. Ulric raciocinou por um instante e pôs-se de pé. Caminhou até a garota; ela respirava aceleradamente. Estava completamente desesperada. Naquele momento ele teve certeza de que ela não era Avril. Simplesmente não podia.
– Não é ela – disse ele, com toda certeza que conseguira encontrar. – Ela não é tola. Estamos semanas atrás dela, e todas as vezes que ela envenenou uma aldeia ou vila, sobrou uma única pessoa. Já matamos uma mulher que foi a única a sobreviver. Ela nos enganou uma vez, e não haverá uma segunda. Não mataremos em vão novamente – ele sacou uma faca de sua bota e cortou a corda que prendia a garota. Quando terminou, a morena desmoronou aos seus pés.
– Obrigada... Obrigada...
Osmund suspirou e largou a pedra. Levantou-se e guardou a espada na bainha, espreguiçando-se. Correu até Barton, que desmontava as cabanas, e apressou-se para ajudá-lo.
Ulric não ajudou os companheiros. Olhou para a garota, caída aos seus pés, e ofereceu-lhe a mão.
– Consegue andar, garota? – ela agarrou o braço e levantou-se, ainda chorando e soluçando. – Já viu Avril?
– Eu já lhe disse senhor, eu lhe disse... Ela é loira e de olhos azuis. É mais bela que qualquer outra mulher... Quando a ver, o senhor não terá dúvidas de quem é...
A garota apoiou-se na árvore e levou um de seus pés por cima do joelho. Segurou o pé esquerdo e o inspecionou: dois dedos estavam demasiados machucados. Ao menos ainda podia andar.
– Desculpe – disse Ulric. Achou que desculpar-se por tirá-la de casa e levá-la para tão longe seria o suficiente. A garota acenou com a cabeça e sorriu tristemente. Ulric sorriu, contudo, sem demonstrar sentimentos. Virou-se para os companheiros, cujo ambos já estavam montados nos cavalos, com a bagagem amarrada atrás.
Ulric contemplou Osmund: segurava uma Pomba-Mensageira na mão esquerda, e na outra, uma carta. “Mais uma?” pensou Ulric. A garota morena certamente não era Avril, a Bela.
– O que diz? – perguntou Ulric, montando seu árabe castanho. Era a única das montarias que não carregava bagagens.
Barton olhou de relance para Ulric.
– “Creio que esta garota que capturaram não seja eu. Não posso saber se a mataram ou não, mas isto não importa. Sei que a torturaram”. Ela é louca – Barton guardou a carta no cinto e libertou a pomba.
– Ei, garota! – gritou Osmund. Pareceu ter uma ideia. A menina virou-se para o cavaleiro, assustada. – Por que não bebeu a água do poço?
Cambaleando e manca, ela caminhou desajeitadamente em direção ao cavaleiro. Quando se aproximou o suficiente, disse:
– Quando eu fui tirar água do poço, Avril tomou o balde de minha mão e o encheu para mim. Eu não relutei e a esperei enchê-lo, e depois voltei para casa. Olhei-a pela janela e a vi derramar algum liquido na água. Eu não pude ver o que era. No outro dia, minha avó e avô estavam extremamente doentes. Disseram-me que uma bruxa havia contaminado a água do poço. Mas era tarde; todos os que moravam ao redor do poço, exceto a mim, morreram. Eu sabia que não poderia nunca mais tomar a água daquele poço. Foi assim que sobrevivi.
Osmund jogou metade do pão negro que comia para a garota. Caiu ao lado dela, partindo-se ao meio.
– Ela armou para você, menina. Foi esperta – disse o cavaleiro. A garota acenou com a cabeça e abaixou-se para pegar o pão. Ulric segurou as rédeas e disse:
– Vamos para a Vila do Carvalho. Não temos mais nada a tratar aqui – ele gritou e galopou em direção à floresta. Os companheiros o seguiram. “Lá deve haver sinais de onde esteja atualmente”, pensou Ulric, desviando-se de uma árvore. “Seu último assassinato foi lá”.
– Precisamos encontrar logo esta mulher. Nunca procurei por tanto tempo uma bruxa – disse Osmund, esforçando-se para não deixar a voz partir com o vento que lhe tocava o rosto, cortando-lhe de leve.
– É uma bruxa diferente – disse Barton, disparando para o lado de Osmund. – Talvez nunca voltemos para casa.
Ele provocou altas gargalhadas entre os dois; mas Ulric permanecia sério. “Matamos em vão”, pensava. Estava radiante de raiva. Queria decapitar a bruxa que lhe fizera assassinar em vão. Mataria-a com todo o prazer que pudesse encontrar. Osmund e Barton, portanto, mantinham a felicidade ao lado; mesmo que pudessem realmente não voltar para casa tão cedo, permaneciam rindo de piadas. Mas Ulric era diferente. Importava-se apenas com a morte da bruxa. Não descansaria até que ela estivesse morta e afogada no próprio sangue escarlate.
– Ulric, que há de errado? Está quieto demais! – perguntou Barton, acompanhando o amigo.
– Nós matamos em vão, Bart. Não devemos cometer nem mais um erro. Não podemos mais ser enganados por uma maldita bruxa. Ela desafiou os poderes dos Deuses. E nós as mostraremos que a fé pode ser tão forte quanto um mero feitiço de mentira.
Barton não respondeu, e diminuiu a velocidade. Achou que fosse melhor deixá-lo sozinho. “Vamos encontrá-la, e matá-la” murmurou Ulric para si, quando o outro cavaleiro galopou para o lado de Osmund. Avril, a Bela, tinha de morrer. O caos que espalhara e que espalhava tinha de acabar. Mas Ulric, Osmund e Barton procuravam-na para detê-la. Para por um fim no caos que ela iniciara.
Capítulo 4: Will I
- Spoiler:
- O pôr do sol estava vermelho. Sangue de bons homens havia sido derramado.
Os últimos raios de luz reluziam o Rio de Cachoeira, que nunca em toda sua existência propagou algo de tanta tenebrosidade. Jazia, na água vermelha de sangue rubro, Rei Aubri e seus fiéis cavaleiros.
Devia ser uma humilde caça a javalis, para o festim da chegada de Príncipe Alfred no Reino de Alestan. Era filho de Rei Aubri e herdeiro do trono; mas jazia ao lado pai, afogado na água banhada de sangue. Nada, exatamente nada, havia saído como desejado. Não encontraram um javali, portanto, encontraram o Povo da Floresta: humanos selvagens e extremamente mortais, capazes de devorarem uns aos outros.
Jamais poderiam vencê-los em menor número. Tentaram fugir, porém, em vão. Quando os cavalos se encontraram com o Rio da Cachoeira, o outro lado também fora cercado pelo Povo da Floresta. As flechas subiram ao céu, e juntas formaram uma nuvem tenebrosa, que pouco duraria. O último som que o rei e o filho escutaram fora o ruído desagradável das flechas atravessando-lhes o pescoço. O rei e o único herdeiro morreram ali, por culpa de um mero descuido.
O que haviam feito era tolice. A Floresta da Cachoeira era perigosa, justamente pelo Povo da Floresta lá residir. Ninguém exceto eles poderia entrar naquela mata; eles não deixavam ninguém além de si adentrarem lá. Aquela floresta era a casa deles. Quem entrasse sem permissão, morreria, fosse criança ou mulher.
O Reino de Alestan, portanto, teve um fim triste na linhagem da família real.
A esposa de Rei Aubri, Lady Alyva, se tornaria rainha. Era uma mulher má, e Aubri sempre soube. Quando o poder de governar estivesse consigo, ela abusava de seu uso; sentia-se uma deusa.
Em Alestan surgia uma nova era, de dificuldades e tristeza. Alyva agora era rainha. Aubri e o filho jaziam mortos afogados no próprio sangue. E a nova rainha pouco se importava em encontrar os corpos; governava agora todo um reino, e nada poderia fazer-lhe triste neste momento de tanto poder.
Mesmo que não tivesse vontade de encontrar os corpos, ela enviara dois dos antigos Guardas Reais para encontrá-los: Will e Baldwin. Ambos agora não faziam mais parte da Guarda Real, e apenas da Guarda da Cidade. “Serei generosa com vocês. Ao invés de deixá-los sem nada, lhes rebaixarei para a Guarda da Cidade”, disse-lhes a rainha quando fora anunciada a morte do rei.
“Jurei fidelidade à família Alwyn de Rei Aubri e Príncipe Alfred, não para a família arrogante de Lady Alyva”, dizia Will repetidas vezes à Baldwin. Alyva agora os enviara numa missão demasiada perigosa, para buscar os corpos do rei e do príncipe. Ela não se importava com a vida dos dois; eram meros Guardas da Cidade.
Mas Will e Baldwin não foram buscar os corpos por terra, onde se tornariam mais barulhentos e visíveis; eles desciam o Rio da Cachoeira com uma canoa, grande o suficiente para levar os corpos.
A água, após um ponto, tornava-se vermelha. Já estavam próximos de encontrarem o desejado, e aparentemente sem correrem risco algum.
- Olhe lá, Baldwin – disse Will apontando para o leste. – Vejo uma bandeira com o estandarte dos Alwyn.
Baldwin largou o remo e inclinou-se para tentar observá-la. Viu-a na água, portanto, ainda apontada para cima. Parecia que algo a segurava sob a água.
- Como ela está apontada para o alto? Seria alguma armação?
- Mesmo que seja, teremos de ir até lá. Se não voltarmos com os corpos, morreremos – Will empurrou o remo com toda sua força. – Mas prefiro morrer aqui que nas mãos daquela rainha louca.
Baldwin gargalhou, alto demais. Will virou-se para o companheiro e tampou-lhe a boca com as costas da mão.
- Silêncio, tolo! O Povo da Floresta nos escutará! – ele sussurrou. Baldwin retirou a mão do amigo lentamente, e assentiu com um gesto.
- Desculpe-me. Não pude me conter.
Will suspirou fundo; estava cansado.
- Que seja. Apenas seja mais cuidadoso. Eu disse que prefiro morrer nas mãos destes selvagens, mas se eu puder, evitarei. Faça o mesmo.
Baldwin engoliu seco, e novamente assentiu. Havia sido rudemente corrigido pelo colega, e agora, decidira não dizer nada que não fosse útil. Quando finalmente alcançaram a parte do rio onde os cavaleiros haviam sido assassinados, desceram da canoa e largaram os remos. Empurram-na para a beira e garantiram de que ela não sairia do lugar.
O local fedia a cadáveres de cavalos e homens; mas os dois deviam procurar o rei e o príncipe.
- Procure de um lado, que procuro de outro – ordenou Will, caminhando na água que lhe subia até a cintura. Ele abaixou-se e mergulhou na água rubra. Baldwin, ao vê-lo, imitou-o.
Reviraram diversos dos corpos a procura deles. Encontraram ambos os Guardas Reais que foram junto ao rei, e agradeceram aos Deuses por eles não terem ido nesta caçada mortal.
Baldwin, repentino, subiu a superfície segurando o braço de um cadáver. Arrastou-o com dificuldade para o lado do barco, e virou-o para ver o rosto novamente. Era Príncipe Alfred.
- Tinha vinte e dois anos – disse Will, aproximando-se de Baldwin. – Agradeço aos Deuses por termos trinta, e rezo para que vivemos até os oitenta. Jamais quero morrer numa guerra ou de bobeira, como aconteceu com ele. Pobre menino.
Baldwin, antes que gargalhasse, tampou a boca com a mão.
- Não quero cometer mais erros – disse. – Muito menos aqui, em terra. E como eu encontrei o príncipe, é mais que sua obrigação encontrar o rei.
Will bufou, e protestou em seus pensamentos. Virou-se para o rio e voltou a caminhar na água escarlate. Suspirou fundo e prendeu a respiração; pretendia mergulhar e procurar o rei. Abaixou-se para o fundo e abriu os olhos. Com toda a velocidade que conseguira obter, vasculhou todos os corpos, mas sem sinal algum do corpo. “Poderia ele estar vivo?” pensou.
Quando voltou à superfície, viu Baldwin ajeitando o corpo do príncipe na canoa.
- Baldwin, poderia ajudar-me a encontrar o rei? Ele pode estar vivo, sabia?
Sem que antes pudesse se conter, o outro guarda cedeu às gargalhadas; a voz ecoou na floresta. Quando percebeu, era tarde.
- Deuses! Desculpe-me, Will. Eu achei que você queria encontrá-lo vivo na água – ele virou-se para a floresta, assustado.
- Tolo! Eu não encontrei o corpo dele em lugar algum, é por isso! Ajude-me com isto, rápido! – ele voltou a mergulhar. Baldwin saltou para o rio e mergulhou, seguindo o companheiro. Rezou para que ele pudesse estar certo sobre o rei estar vivo.
A noite chegava aos poucos, enquanto o Sol escondia-se no oeste. Acharam que estava na hora de voltar para a cidade e dizer à rainha que o rei não fora encontrado. Com certeza sofreriam nas mãos da mulher, mas felizmente estariam certos. A rainha, portanto, diria infelizmente; caso ele ainda estivesse vivo, o trono sairia de seus domínios.
Will e Baldwin voltaram à superfície e caminharam para perto da canoa. Sem que antes que pudessem subi-la e remar rio acima, desmoronaram ao lado do barco. Estavam cansados e exaustos.
- Eu prefiro passar a noite aqui, Baldwin, e partir de madrugada. Que acha? – Will riu, mas baixo.
- É uma ótima ideia – respondeu Baldwin, observando o céu escuro que acabara de surgir. – Mas Rei Aubri poderia estar mesmo vivo?
Will suspirou.
- Talvez. Esse pessoal selvagem, mesmo que não saíam daqui, conhecem o rosto do velho. Podem ter pegado o corpo dele e levado para algum lugar – após dizer isso, gritos ressoaram na floresta. Puseram-se de pé num pulo, e correram para a canoa. Quando a empurraram para a água, flechas passaram zumbindo ao lado de seus ouvidos.
- Nada bom! – disse Baldwin, desesperado, enquanto tentava subir na canoa. Will correu até ele e segurou-o pelos cabelos, impedindo-o de subir. Antes que Baldwin pudesse dizer algo, Will disse:
- Vire-a! Esqueça o corpo do príncipe! – ele segurou o barco com toda sua força e empurrou-o. Baldwin fez o mesmo.
Quando a canoa virou-se para baixo, os dois mergulharam e subiram no vão de ar. Tinham de segurá-la para que não afundasse.
- Você é um gênio – sussurrou Baldwin, aliviado. Olhou para baixo e viu o corpo do príncipe sob seus pés. – Iremos pegá-lo, depois?
- Claro – disse Will. – Estamos aqui para isto. Cale-se, agora. Eles estão aqui – ele escutou passos; estavam em terra. Pareciam sussurrar entre si. “São dois?”, perguntou-se na mente. Levou a mão ao cabo de sua espada e preparou-se para agir, caso os selvagens vissem-lhes. Mesmo que pudesse desembainhar sua espada, seria lento. Sua cintura estava afundada, junto à espada.
Os selvagens, depois, pularam no rio. Neste momento Will preocupou-se. Eles aproximaram-se da canoa e tocaram-na no exterior. Antes que pudessem agir, um selvagem empurrou o barco e os guardas tornaram-se visíveis. Não eram dois; eram três. Ambos equipavam-se com cotas de malha roubadas e machados.
- Guardas! – gritou o qual virou a canoa. – Não tenham medo, guerreiros, não tenham medo. Vocês virão conosco e se encontraram com seu rei.
A única mulher lá presente protestou:
- Vamos matá-los aqui. Será melhor.
- Hoje levaremos estes dois – disse o mais velho, que permanecera em terra firme. – Os trocaremos por comida. Os comerciantes chegaram hoje – ele virou-se para os guardas. – Meu nome é Ethelred. O que virou o barco é Edred. A garota chama-se Lyveva – ele jogou uma corda para Edred. O homem usou-a para amarrar Baldwin e Will, juntos. Com a ponta, puxou-os a força para fora do rio.
Seguiram a única trilha existente, quase apagada. No caminho, Will perguntou a Edred:
- O rei está vivo?
O selvagem riu.
- É surpresa. Quando chegar a hora certa você saberá!
Will entreolhou Baldwin, que aparentava estar completamente assustado. “Está tudo acabado”, pensou Will. Não podia fingir que não estava desesperado; estava tanto quanto Baldwin. Orou para que ao menos encontrassem Rei Aubri, vivo.
Última edição por FilipeJF em 6/12/2012, 19:57, editado 8 vez(es)